por Eduardo Klausner

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O DESAFIO DA GLOBALIZAÇÃO DO CONSUMO NOS DEZOITO ANOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR BRASILEIRO

O DESAFIO DA GLOBALIZAÇÃO DO CONSUMO NOS DEZOITO ANOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR BRASILEIRO


(artigo de doutrina produzido em agosto de 2008, publicado na Revista Fórum da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro – AMAERJ, Ano XX, número 19, Julho/Agosto de 2008.)



EDUARDO ANTÔNIO KLAUSNER

Mestre e Doutor em Direito Internacional e da Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Fórum Permanente de Debates sobre Direito do Ambiente, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Professor da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro – EMERJ.




Sumário: 1. Introdução. - 2. Aurora do Direito do Consumidor: 2.1. Características do Direito do Consumidor brasileiro. - 3. Globalização e consumo transfronteiriço: 3.1. A aplicação do CDC aos conflitos internacionais de consumo. – 4. Considerações Finais.






1. INTRODUÇÃO.

A proteção do consumidor como direito fundamental é inscrita na Constituição Federal de 1988, artigos 5o., inciso XXXII e 170, inciso V, e consagrada no Código de Defesa do Consumidor de 1990, Lei n. 8.078/90, de 11 de setembro de 1990, uma das mais modernas legislações em vigor no mundo desde 1991.

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) faz dezoito anos de existência em setembro de 2008, e alterou significativamente o relacionamento jurídico e econômico entre fornecedores e consumidores brasileiros.

Fruto do amadurecimento do Direito do Consumidor como ramo específico do Direito em nosso país, o CDC é típica produção jurídica do final século XX e visa reequilibrar as relações mantidas no mercado entre fornecedor e consumidor, assimétricas em razão da massificação da produção, da contratação e do consumo decorrente da evolução tecnológica capitalista e das modernas técnicas de marketing na sociedade de consumo [1] na qual vivemos.

No entanto, após dezoito anos de existência, o CDC começa a ser desafiado diante da globalização do consumo, fenômeno que no Brasil não era perceptível à época de sua promulgação, quando o turismo internacional era para poucos abastados, o computador pessoal não existia e a internet ainda era um projeto eminentemente militar e circunspecto a uma pequena rede norte-americana.

Neste brevíssimo estudo, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, pretende-se destacar a capacidade e a vitalidade do CDC e do Direito do Consumidor brasileiro para enfrentar estes novos problemas jurídicos oriundos da internacionalização das relações de consumo.

2. AURORA DO DIREITO DO CONSUMIDOR [2] .

O desenvolvimento tecnológico e a utilização de máquinas para o fabrico de bens deram ensejo à produção em massa, e essa produção em massa levou a uma nova visão capitalista e expansionista, fomentadora de um mercado de consumo para mercadorias produzidas industrialmente [3] transformando as relações sociais, econômicas e jurídicas, especialmente entre fornecedores e consumidores privados.

A relação entre consumidor e fornecedor no mercado, antes razoavelmente equilibrada, torna-se desarmoniosa em detrimento do consumidor, exigindo do Direito e do Estado novas soluções e uma atitude positiva para superar a desigualdade entre os agentes econômicos envolvidos na relação de consumo. O consumidor não tem mais condições de discutir os termos da produção e da contratação com o fornecedor, tornando-se mero aderente à oferta do fornecedor, massificada e envolta em técnicas sedutoras de marketing. A necessidade da proteção estatal em favor do consumidor torna-se evidente, tanto para assegurar a proteção dos direitos econômicos do consumidor, como para assegurar a saúde da população que corre riscos diante de produtos sem qualidade.

Os Estados Unidos da América, diante desta nova realidade, deflagra as iniciativas com o objetivo de proteção específica do consumidor [4], cuja filosofia rapidamente se espalha pelo mundo [5], especialmente entre os países capitalistas, com o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor em face do fornecedor. Tais iniciativas levam ao surgimento de políticas e legislações nacionais voltadas especialmente para as peculiaridades do consumo.

Assegurar a saúde da população diante de produtos sem qualidade postos no mercado, assegurar a proteção dos direitos econômicos do consumidor, bem como proporcionar efetivo acesso a Justiça, diante de uma posição progressivamente superior na relação de consumo por parte do fornecedor que passa a impor ao consumidor suas regras e seus próprios parâmetros econômicos de preço justo e qualidade, e reequilibrar uma relação jurídico-econômica potencialmente injusta e iníqua em desfavor do consumidor, torna-se sine qua non para os países capitalistas, resultando em um novo ramo da Ciência do Direito [6].

Na América Latina, o desenvolvimento de uma legislação específica para a proteção e defesa dos consumidores se iniciou em meados da década de setenta, assim como a criação e o fortalecimento de instituições voltadas à defesa do consumidor [7].

No Brasil, antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 1988, que incorporou a proteção do consumidor como direito fundamental nos artigos 5o., inciso XXXII e 170, inciso V de 1988, foi nomeado pelo Ministério da Justiça uma comissão de juristas presidida pela Professora Ada Pellegrini Grinover no sentido de ser elaborado Anteprojeto de Código de Defesa do Consumidor, anteprojeto este debatido com especialistas e com todos os segmentos interessados. Transformado em projeto de lei, tendo como relator o Deputado Federal Joaci Góes, a comissão o assessorou na consolidação dos projetos legislativos existentes e desta consolidação, também amplamente discutida com a sociedade civil, nasceu o Projeto da Comissão Mista do Congresso Nacional, - comissão constituída por força do art. 48 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal -, que foi votado, - apesar do lobby dos empresários que tentou impedir a votação do texto através de uma manobra procedimental -, sancionado com vetos parciais e publicado a 12 de setembro de 1990, como Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, e entrou em vigor em 11 de março de 1991, segunda-feira, após vacatio legis de 180 dias por força do seu artigo 118.

O Código brasileiro sofreu influência da Resolução n. 39/248, de 09/04/1985, da Assembléia Geral da ONU; do Projet de Code de la Consommation, francês; da Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuário, n. 26/1984, espanhola; do Decreto-Lei n. 446/85 e da Lei n. 29/81, portuguesa; da Ley Federal de Protección al Consumidor, de 1976, mexicana; da Loi sur la Protection du Consommateur, de 1979, do Quebec, Canadá; das Diretivas ns. 84/450 e 85/374 da Comunidade Européia; do Gesetz zur Regelung des Rechts der Allgemeinen Geschaftsbedingungen - AGB Gesetz, de 1976, alemão; do Federal Trade Commission Act, do Consumer Product Safety Act, do Truth in Lending Act, do Fair Credit Reporting Act e do FairDebt Collection Practices Act, estadunidense [8].

No MERCOSUL, os Estados-Sócios também promulgaram suas leis de defesa do consumidor. A lei argentina de defesa do consumidor foi promulgada em 1993 ( Ley 24.240 – Defensa del consumidor de 1993), a paraguaia em 1998 (Ley 1.334/98 de Defensa del consumidor y del usuário) [9], e a uruguaia em 1999 (Ley 17.189 de 1999). Além disso, estuda-se a instituição de tratados regionais para regular de maneira harmônica os direitos do consumidor internacional, tanto no MERCOSUL, como na OEA (cuja Sétima Conferência Interamericana Especializada em Direito Internacional Privado -CIDIP-VII está em curso versando sobre o tema).

2.1. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO DO CONSUMIDOR BRASILEIRO.

O Direito do Consumidor, como disciplina jurídica autônoma, rege as relações jurídicas entre fornecedor e consumidor tendo como princípio fundamental e diretor da ordem jurídica consumerista a vulnerabilidade do consumidor diante do fornecedor [10]. A necessidade de superar a vulnerabilidade do consumidor é o principal objetivo da nova disciplina jurídica e, conseqüentemente, do CDC brasileiro (ver art. 4o., I).

No Brasil, assim como em diversos outros países desenvolvidos, o Direito do Consumidor tem por característica se constituir num microssistema jurídico multidisciplinar e interdisciplinar composto de normas de direito público e privado, reunidas por princípios filosóficos próprios do Direito do Consumidor, assim como também tem por característica preencher com seus princípios e filosofia todas as normas, independentemente do ramo do Direito ao qual tradicionalmente pertençam, sempre que forem aplicadas a uma relação de consumo, no intuito de superar a debilidade do consumidor [11]. O CDC em seu artigo 1º. é claro quanto a sua finalidade de proteger e defender o consumidor.

Consumidor é aquele que consome bens ou serviços, públicos ou privados, para atender necessidades próprias e não profissionais, caracterização essa que valoriza o consumidor como destinatário final econômico do bem [12](art.2º, CDC). Trata-se da interpretação finalista, a qual não abrange aquele adquirente que incorpora o bem ou serviço à cadeia produtiva como insumo [13]. Isso ocorre porque só essa categoria de agentes econômicos realmente encontra-se em situação de hipossuficiencia a justificar uma proteção especial, a qual visa reequilibrar a relação jurídica mantida com o fornecedor [14].

No Código de Defesa do Consumidor brasileiro (CDC), a definição de consumidor abrange, também, sujeitos equiparados a consumidores, vítimas de atividades dos fornecedores endereçadas ao mercado de consumo.

O parágrafo único do artigo 2o. equipara a consumidor “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. Por sua vez, o artigo 17 equipara a consumidor todas as vítimas de um acidente de consumo, ou seja, a legislação consumerista protege e equipara a consumidor todo aquele que for vítima de acidente decorrente de produto ou serviço, independentemente de ser parte em contrato de consumo, ou ser usuário do produto ou serviço colocado no mercado de consumo. O artigo 29, inserido no Capítulo V que dispõe sobre práticas comerciais, equipara a consumidor todas as pessoas determináveis ou não expostas às práticas previstas no capítulo e no capítulo seguinte (o Capítulo VI do CDC trata da proteção contratual).

O conceito de fornecedor é dado pelo artigo 3o. da Lei n. 8.078/90 (CDC), e assim é considerado toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, ou ainda os entes despersonalizados que colocarem no mercado produto ou serviço em caráter profissional e com intuito de lucro. Nesse rol se incluem os profissionais liberais (artigo 14, parágrafo 4o.).

Os parágrafos 1o. e 2o. do artigo 3o. definem produto ou serviço de forma ampla. O parágrafo 1o. caracteriza como produto “qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”. O parágrafo 2o. conceitua como serviço qualquer atividade fornecida no mercado de consumo mediante remuneração, salvo as decorrentes de contrato de trabalho, e incluindo os serviços diretamente gratuitos, mas indiretamente remunerados ou onerosos como os decorrentes de marketing empresarial [15].

Assim sendo, pode-se afirmar que a relação de consumo é a relação jurídica mantida entre fornecedor e consumidor, decorrente de contrato, ou decorrente de utilização de bem ou serviço posto no mercado de consumo, ou ainda a decorrente de responsabilidade civil extracontratual com consumidor equiparado [16].

Por sua vez, a preocupação com a efetiva proteção do consumidor, fez o legislador adotar em matéria de responsabilidade civil a Teoria do Risco do Empreendimento [17]e criar um particular sistema de responsabilidade civil decorrente de vícios ou defeitos de bens ou serviços fornecidos independente de culpa ( a responsabilidade objetiva), solidária ou subsidiária, dependendo do caso, entre todos os responsáveis pela colocação do produto ou serviço no mercado, inclusive desconsiderando-se a personalidade jurídica das sociedades quando imprescindível para proteger os direitos dos consumidores (artigos 12 a 14, 18 a 20 e 28).

Deve ser destacada no CDC, ainda, a existência de um elenco de direitos básicos dos consumidores e instrumentos para a sua implementação, uma disciplina para o marketing e para a contratação de modo a evitarem-se práticas comerciais abusivas e contratos com cláusulas abusivas, a criação de um sistema sancionatório administrativo e penal específico e, principalmente, disposições de natureza processual civil que proporcionam a facilitação do acesso do consumidor à Justiça e a defesa do consumidor em Juízo. No entanto, o CDC não possui nenhuma disposição específica aplicável a relação de consumo internacional, seja de direito material ou processual.

Por sua vez, o papel da jurisprudência na formação do Direito do Consumidor brasileiro é fundamental e necessário. O Direito do Consumidor e o CDC não teriam a importância nas relações econômico-jurídicas que hoje têm, se a jurisprudência firmada nos tribunais não tivesse preconizado pragmaticamente o seu status de direito fundamental de proteção ao consumidor.

3. GLOBALIZAÇÃO E CONSUMO TRANSFRONTEIRIÇO.

A ordem econômica mundial gerenciada por organismos internacionais, assentada no comércio internacional e em interações econômicas progressivamente mais complexas entre os Estados, somado ao processo de formação de blocos regionais entre determinados Estados para favorecer a política internacional e o comércio entre eles, forma a estrutura do que denominamos globalização [18].

A globalização como um processo de natureza econômica e política mundial, apresenta, entre outras, as seguintes características relevantes para o tema deste estudo: intenso comércio internacional assentado numa estrutura de produção pós-fordista; relações político-econômicas entre os Estados de interdependência complexa; formação de blocos comerciais regionais; novos agentes econômicos internacionais (OMC, FMI, etc.); homogeneização de padrões culturais e de consumo [19]; intensificação do consumo transfronteiras (internacional), especialmente através de contratos eletrônicos e turísticos; incremento na produção de novos instrumentos jurídicos de direito internacional público e privado para regulação desta nova realidade mundial.

O Direito do Consumidor, consagrado em âmbito nacional na regulamentação das relações de consumo entre consumidores e fornecedores, apesar de sua juventude e atualidade, encontra como novo desafio regulamentar as crescentes relações de consumo internacionais e, principalmente, dar efetividade à proteção do consumidor nas demandas decorrentes de relações transfronteiras. Relações essas cuja internacionalidade é assinalada por estar conectado a dois ou mais ordenamentos jurídicos. O critério para se estabelecer como internacional a relação de consumo deve ser baseado no domicílio, pois é o fato de estarem fornecedor e consumidor domiciliados em Estados diversos, e, conseqüentemente, sujeitos a ordenamentos jurídicos diversos, que ensejará o conflito de leis no espaço em matéria de consumo.

A magnitude dos números envolvidos no mercado de consumo on line ou ligados ao turismo demonstra que proteger o consumidor internacional é essencial. No Brasil, em 2006 o e-commerce movimentou mais de R$13,3 bilhões (incluindo transações nacionais e internacionais). Na área de bens de consumo, as transações ultrapassaram os R$ 4 bilhões, mais de quatro vezes o valor das transações realizadas em 2002, enquanto o volume financeiro movimentado no setor de turismo em transações pela internet montaram cerca de R$2,8 bilhões [20]. Por sua vez, o Brasil recebeu 5,36 milhões de turistas.

Assim sendo, a proteção jurídica do consumidor internacional é uma necessidade que atende aos interesses da sociedade brasileira. Essa proteção, a mingua de disposições específicas sobre o tema, vem sendo proporcionada pelo Poder Judiciário, criativamente utilizando o CDC sempre através de uma interpretação teleológica do mesmo.

3.1. A APLICAÇÃO DO CDC AOS CONFLITOS INTERNACIONAIS DE CONSUMO [21].

O consumo internacional possui peculiaridades que exigem especial atenção dos operadores do direito. São elas: 1) tratar-se de negócio jurídico apenas eventualmente travado pelo consumidor ; 2) nos contratos turísticos, ser difícil a reexecução de um serviço, ou mesmo impossível a reexecução do mesmo; 3) existir uma barreira lingüística entre o fornecedor e o consumidor, a qual pode impedir o consumidor de obter pleno conhecimento das informações necessárias para a contratação; 4) as diferenças de proteção legal ao consumidor entre as normas do seu domicilio e do domicilio do fornecedor, capazes de confundirem o consumidor quanto à real extensão de seus direitos na relação internacional de consumo[22].

Na eventual necessidade do consumidor sustentar um litígio no exterior para fazer valer seus direitos violados, dificuldades específicas obstruem ou oneram a possibilidade do consumidor acessar a Justiça ou ver seus direitos efetivamente protegidos, v.g.: 1) a complexidade para determinar-se a jurisdição competente no plano internacional e a real possibilidade do consumidor litigar no foro que for competente; 2) a diversidade de normas nacionais sobre direitos do consumidor e a existência de diferentes sistemas jurídicos e judiciários; 3) o custo de sustentar um litígio no qual todos os trâmites processuais, ou parte deles se desenvolverá no estrangeiro, comparado ao pequeno valor do contrato de consumo; 4) o cumprimento de atos no estrangeiro; 5) a necessidade de procedimento especial para o reconhecimento e a execução das decisões judiciais estrangeiras [23].

Os tribunais brasileiros sensíveis a particular debilidade do consumidor internacional, e como dito acima, ante a ausência de uma legislação específica em nível nacional ou internacional, começaram a aplicar o CDC e o ordenamento jurídico vigente em demandas de consumo tipicamente internacionais, produzindo uma importante e vanguardista jurisprudência sobre a matéria que merece notícia.

A primeira decisão que se destaca é a prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no famoso caso “Panasonic”, Recurso Especial n. 63.981-SP (Registro n. 95.0018349-8), em 11 de abril de 2000, publicada no D.J. de 20.11.2000, tendo como relator designado para o acórdão o Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, verdadeiro leading case [24]em matéria de consumo internacional.

Neste caso, consumidor brasileiro se dirigiu aos E.U.A. onde comprou uma filmadora fabricada e fornecida pela Panasonic estadunidense exclusivamente naquele mercado interno, e ao chegar ao Brasil a câmera apresentou vício no funcionamento. O STJ, em julgamento por maioria, condenou a Panasonic brasileira, pessoa jurídica distinta da Panasonic norte-americana, a responder pelos vícios do produto americano por ser da mesma marca dos fabricados pelo produtor nacional.

Com base na citada decisão, é possível ao consumidor brasileiro sustentar a legitimidade de propor uma ação em seu domicílio, valendo-se do artigo 101, I, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), contra qualquer pessoa jurídica sediada em território nacional que integre o mesmo grupo econômico do fornecedor localizado no estrangeiro e produtor do bem de consumo, ou contra empresário que utilize a mesma marca para identificar seus produtos (embora não tenha produzido ou comercializado o bem objeto da prestação de consumo), e com base no artigo 28 do CDC (citado expressamente no voto do Min. Ruy Rosado de Aguiar), responsabilizá-la pelos vícios e danos decorrentes do produto ou serviço adquirido no exterior. Evita-se assim litigar com um fornecedor situado no estrangeiro, o que, sem dúvidas, facilita imensamente a restauração do direito do consumidor lesado. Outro importante aspecto desta decisão é o fato do STJ ter aplicado o CDC para decidir o mérito da demanda, apesar da relação contratual ter se constituído integralmente nos E.U.A., atribuindo efeitos extraterritoriais à lei nacional e desconsiderando o disposto no art. 9º. da Lei de Introdução ao Código Civil [25].

No mesmo sentido da decisão Panasonic, a prolatada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos Embargos Infringentes 2001.005.00654, 15a. Câmara Cível, (Ap. Cível n. 2000.001.17098) processo n. 98.001.020.871-0. Neste caso, a Sony Comércio e Indústria Ltda., pessoa jurídica brasileira, em razão de vícios em aparelho televisor fabricado pela Sony Corporation, pessoa jurídica domiciliada no estrangeiro, comprado por consumidor brasileiro de importador independente na zona franca de Manaus, aparelho esse que não é fabricado ou comercializado no Brasil pela Sony brasileira, foi condenada definitivamente em Embargos Infringentes a fornecer ao consumidor aparelho em perfeitas condições de uso idêntico ao adquirido com vícios, e ao pagamento de indenização por danos morais. A diferença entre as decisões é que nesta, ao contrário do Caso Panasonic, foi provado que a Sony Corporation controla acionariamente a Sony Comércio e Indústria Ltda, estabelecida no Brasil, e tal fato foi fundamental para a decisão do tribunal estadual.

A jurisprudência também tem demonstrado uma forte tendência em proteger o consumidor em contrato de consumo internacional nos quais o elemento de estraneidade na relação contratual não é evidente para o consumidor, que sequer imagina em sustentar uma lide no estrangeiro em caso de inadimplemento contratual, vício ou defeito do produto ou serviço. Nesses casos, os tribunais responsabilizam o empresário que fizer parte da cadeia de colocação do bem no mercado e esteja domiciliado no Brasil, citem-se a título de exemplo: 1) a responsabilização das agências de viagens por inexecução ou má prestação de serviços e danos causados por transportadores, hotéis e demais prestadores de serviços no curso de viagem turística (STJ - REsp. 291384/RJ de 15/05/2001 e TJERJ - Ap.Cível 2002.001.01506 de 06.03.2002); 2) a responsabilidade solidária atribuída ao comerciante encarregado da venda ou da manutenção do produto, por vícios do produto importado (nos arestos citados, automóveis de passeio)(TJERS – Ap. Cív. 700001577154 de 22.11.2000 e TJERJ – Ap. Cível 2005.001.44994 de 18.07.2006); 3) a responsabilidade solidária atribuída ao mandatário do proprietário/empreendedor em contrato internacional de compra e venda de direitos relativos a imóvel situado no estrangeiro pelo sistema de multipropriedade (TJERS – Ap. Cível 196182760 de 19.11.1996) [26].

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Como se constata neste breve estudo, o Direito do Consumidor, e mais especificamente o CDC brasileiro, nestes dezoito anos progrediu rapidamente em sua efetividade. A passos largos o Direito do Consumidor brasileiro, embalado numa preciosa e sensível interpretação jurisprudencial, tornou-se um dos mais eficientes sistemas jurídicos do mundo na proteção do consumidor.

O consumo internacional e as demandas que naturalmente dele decorrem são apenas mais um desafio, mais uma das diversas situações conflituosas a serem enfrentadas por este novo direito, decorrente do desequilíbrio estrutural e natural do mercado e do sistema capitalista mundial que tende a oprimir o consumidor. Desafio esse que o nosso sistema jurídico tem demonstrado estar apto a enfrentar em prol da defesa dos direitos dos consumidores, como demonstra a jurisprudência colacionada, mas que também aponta para a necessidade de desenvolvimento de instrumentos legais próprios para enfrentar estes novos problemas pertencentes à seara do Direito do Consumidor e do Direito Internacional Privado, para assim continuar-se a fazer Justiça.


Notas de fim de página:
1 - Como bem coloca BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Tradução de Artur Mourão, Lisboa: Edições 70, 2005, p.19: "Chegamos ao ponto em que o 'consumo' invade toda a vida [...]".

2 - Para maiores detalhes ver KLAUSNER, Eduardo A. Direitos do Consumidor no MERCOSUL e na União Européia:acesso e efetividade, 2006, Curitiba:Juruá, Capítulo 1.

3 - HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios – 1875-1914. 7a. ed. S. Paulo:Paz e Terra, 2002, pp. 79-83.

4 - FILOMENO, José Geraldo Brito (em Manual de Direitos do Consumidor. 6a. ed.,S.Paulo:Atlas, 2003, p.26) identifica o surgimento do movimento consumerista em conjunto com o movimento sindical nos frigoríficos de Chicago, fundando-se a “Consumer’s League” já em 1891 quando o movimento trabalhista separou-se do movimento consumerista. QUINAUD, Flávio Barbosa e CAFFARATE, Viviane Machado (em Evolução Histórica do Direito do Consumidor in www.jusnavigandi.com.br. N. 41, maio-2000, capturado em 23.11.2002) esclarece que as primeiras leis consumeristas seriam americanas e de índole administrativa, respectivamente: “Meat Inspection Act” e “Pure Food and Drug Act” de 1906, em razão das péssimas condições no manuseamento da carne e na fabricação de embutidos nos E.U.A. RITCHER, Karina (em Consumidor & Mercosul.Curitiba:Juruá ed.,2002,pp.31-32) informa que o contexto da luta pelos direitos individuais nos E.U.A. levou o Presidente John Fitzgerald Kennedy a enviar mensagem dirigida ao Congresso americano, em 15.03.1962, intitulada Special Message to the Congress on Protecting the Consumer Interest. A importância dessa mensagem para o movimento consumerista foi tão significativa que o dia 15 de março foi declarado dia mundial do consumidor.

5 - O reconhecimento da situação específica do consumidor na sociedade de consumo do século XX e sua flagrante inferioridade perante o fornecedor, por sua vez, erige a proteção ao consumidor a princípio universal e direito fundamental do ser humano, reconhecido na Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, na sua 29a. sessão em 1973, e materializado em Resolução da ONU de número 39/248, em 1985, que traçou diretrizes gerais para a proteção do consumidor no intuito de ajudar os países a alcançar uma proteção adequada à sua população como consumidores, a qual seguiram outras resoluções e conferências sobre o tema e outros intimamente correlatos, como concorrência comercial leal e comércio mundial.

6 - Quase todos os países ocidentais possuem normas especiais para a proteção do consumidor, assim como diversos países do Oriente como, por exemplo, o Japão. Frise-se que até Estados árabes já vêm dotando seu ordenamento jurídico com normas dedicadas especialmente à defesa do consumidor, como a novel legislação dos Emirados Árabes Unidos que entrou em vigor em Novembro de 2006. Outrossim, segundo ALLEMAR, Aguinaldo (Breves anotações sobre tutela estatal à relação jurídica de consumo no direito estrangeiro in www.jusnavigandi.com.br., capturado em abril de 2003), os países que não possuem leis específicas para a proteção e defesa do consumidor, possuem controles e medidas de cunho sanitário para preservação da saúde da população, e já procuram desenvolver medidas voltadas a proteção do consumidor, em conformidade com as diretrizes das Nações Unidas, como ocorre nos países do continente africano.

7 - ARRIGHI, Jean M. Capítulo VII – Comercio internacional y protección del consumidor en América Latina. In STIGLITZ, Gabriel(Director).Defensa de los consumidores de productos y servicios – daños –contratos. Buenos Aires:Ediciones La Rocca, 2001, pp.370-374, passim.

8 - GRINOVER, Ada Pellegrini, e BENJAMIM, Antônio Herman de Vasconcellos et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. Rio:Forense Universitária, 6a. ed., 1999, p. 1-10 e 910.

9 - A Argentina e o Paraguai também deram status constitucional a defesa do consumidor nos arts. 42 e 38, respectivamente, de suas Cartas Magnas.

10 - DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao Consumidor – conceito e extensão.S. Paulo:RT, 1994, p. 108, é peremptória ao afirmar que “a verificação da vulnerabilidade do consumidor constituir-se-á na viga mestra do Direito do Consumidor. A princípio, todos os consumidores são vulneráveis”. Nesse sentido também: 1) LORENZETTI, Ricardo Luiz. Consumidores. Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni Ed., 2003,.pp.16-17, citando exemplo de POSNER, Richard. Economic analysis of law. Boston:Little, Broun and Company, 1972, p. 330; 2) ARRIGHI, Jean M., op.cit. p. 371-378; 3) MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. S.Paulo:RT, 4a. ed.,2002, pp. 268 et seq.

11 - Sergio Cavalieri Filho define o CDC como uma sobreestrutura jurídica multidisciplinar com normas de sobredireito aplicáveis em todos os ramos do Direito nos quais ocorram relações de consumo, considerando a característica de ser o CDC uma lei principiológica, estruturada em princípios e cláusulas gerais. In Programa de Direito do Consumidor, 2008, S.Paulo:Atlas, p. 13-14.

12 - 1) Neste sentido a jurisprudência dominante, v.g., STJ – 4a. T. – Resp 218505/MG – rel. Min. Barros Monteiro – j. 16.09.1999. 2) E também a doutrina, v.g., MARQUES, Claudia Lima. Contratos...op.cit.p.252 et al, passim. 3) Para a Ciência Econômica, quem adquire produto ou serviço como insumo não consome, mas sim investe. Sobre o tema na ótica econômica ver GALVES, Carlos. Manual de Economia Política Atual. 14a. ed. Rio:Forense Universitária, 1996 pp. 21, 47-49,54, 338, 395.

13 - A definição finalista é também adotada nos ordenamentos nacionais dos países do MERCOSUL e latino-americanos em geral, nos países europeus e na Comunidade Européia. Ver em matéria de Direito Comparado, LORENZETTI, Ricardo Luis, op. cit. pp.78-83.

14 - Deve-se ressaltar, no entanto, que na jurisprudência brasileira encontram-se algumas decisões que ampliam o conceito de consumidor, assim o considerando todo aquele que retira do mercado bem ou serviço independentemente do destino a ser dado ao bem ou serviço e a qualidade do agente: particular ou profissional. Consumidor, portanto, para essa corrente, é o destinatário fático do bem ou serviço, aquele que, por último, retira o produto do mercado. Essa corrente é denominada “maximalista”. Cite-se, a título de exemplo de adesão a essa corrente, o aresto do STJ – 4a. T. – Resp 142042/RS – j. 11.11.1997 – rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar.

15 - MARQUES, Claudia Lima, BENJAMÍN, Antonio Herman V., et MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 2004, S.Paulo:RT, .Art.3o.p.94.

16 - Nesse sentido CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 4a. ed. 2003. São Paulo:Malheiros. Cite-se, a título de exemplo do pensamento do autor, a seguinte passagem: 135. Consumidor por equiparação [...] A clássica dicotomia entre responsabilidade contratual e extracontratual foi aqui superada, ficando o assunto submetido a um tratamento unitário, tendo em vista que o fundamento da responsabilidade do fornecedor é o defeito do produto ou serviço lançado no mercado e que, numa relação de consumo, contratual ou não, dá causa a um acidente de consumo.(grifos nossos)(p.492).

17 - Neste sentido, entre outros, CAVALIERI FILHO, S., Programa de Direito do Consumdor, op.cit., p.240.

18 - Sobre o assunto se debruçam vários autores, entre eles IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio:Civilização Brasileira, 2002, 10a. ed. e A era do globalismo. Rio:Civilização Brasileira, 2001, 5a. ed.; BAUMANN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas.1999. Tradução de Marcus Penchel, Rio:Zahar.

19 - Segundo MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Globalização e Direito do Consumidor. SUNDFELD, Carlos Ari e VIEIRA, Oscar Vilhena (Coordenadores). Direito Global. 1999, São Paulo:Max Limonad, p.225, a homogeneização do consumo é uma necessidade para se estabilizar a produção lucrativamente.

20 - Dados da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico e da E-Consulting, apud BORGES, André. Comércio eletrônico cresce mais de 30% e supera R$13,3 bilhões. Valor Econômico. São Paulo, sexta-feira e fim de semana, 5,6 e 7 de janeiro de 2007, p. B1.

21 - Para reflexões jurídicas mais profundas sobre o tema, cite-se, entre outros: KLAUSNER, Eduardo A. Reflexões sobre a proteção do consumidor brasileiro nas relações internacionais de consumo in TIBURCIO, Carmen e BARROSO, Luis Roberto (organizadores). O Direito Internacional Contemporâneo: estudos em homenagem ao Professor Jacob Dolinger. 2006, Rio:Renovar, p.388-391, e do mesmo autor, A proteção jurídica do consumidor de produtos e serviços estrangeiros in Revista de Direito do Consumidor, n. 59, julho-setembro, 2006, S.Paulo:RT, p. 53-56.

22 - Nesse sentido, MARQUES, Claudia Lima. A Proteção do consumidor de produtos e serviços estrangeiros no Brasil: primeiras observações sobre os contratos a distância no comércio eletrônico. In Revista de Direito do Consumidor, n. 41, jan.-março de 2002. S.Paulo:RT, pp.65-66.

23 - COMISSÃO EUROPÉIA. Guia del consumidor europeo en el mercado único. Bruxelas, 1996, 2ª.ed.,pp.17-19.

24 - Este caso foi detalhadamente examinado, voto por voto, na obra KLAUSNER, E.A. Direitos do Consumidor no Mercosul e na União Européia, op.cit., p.153-179.

25 - Tanto as normas do CDC quanto as da LICC são de ordem pública e possuem a mesma hierarquia, em tese. Sobre a questão ver KLAUSNER, E.A. Reflexões sobre a proteção do consumidor...,op.cit..

26 - Sobre esse tema ver tb. KLAUSNER, Eduardo A. A proteção jurídica do consumidor de produtos e serviços estrangeiros in Revista de Direito do Consumidor, n. 59, julho-setembro, 2006, S.Paulo:RT, p. 53-56.



Referência para citação:

KLAUSNER, Eduardo Antônio. “O desafio da globalização do consumo nos dezoito anos do Código de Defesa do Consumidor brasileiro”, artigo de doutrina produzido em agosto de 2008, publicado na Revista Fórum da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro – AMAERJ, Ano XX, número 19, Julho/Agosto de 2008.