A PROTEÇÃO JURÍDICA DO CONSUMIDOR DE PRODUTOS E SERVIÇOS ESTRANGEIROS (publicado na Revista de Direito do Consumidor, n. 59, julho-setembro de 2006, S.Paulo:RT.)
EDUARDO ANTÔNIO KLAUSNER
Mestre e Doutor em Direito Internacional e da Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ e da Escola Superior de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – ESAJ.
SUMÁRIO: 1. Introdução. - 2. Os conceitos de consumidor, fornecedor e relações de consumo, no direito brasileiro: 2.1. O consumidor e a relação de consumo internacional. – 3. A aplicação do Direito aos conflitos internacionais de consumo pelos tribunais brasileiros. – 3.1. O caso “Panasonic”. – 3.2. Decisões em lides envolvendo agências de turismo, importadores, e empreendedores de time-sharing. – 4. MERCOSUL. - 5. Considerações finais.
Resumo: O presente artigo objetiva fazer uma breve análise da proteção do consumidor brasileiro na relação internacional de consumo litigiosa.
Palavras-chave: consumidor internacional – consumo internacional – produtos estrangeiros – serviços estrangeiros.
1. INTRODUÇÃO.
O Direito do Consumidor, como ramo específico da Ciência do Direito, é novo, produto do século XX, e visa a reequilibrar as relações mantidas no mercado entre fornecedor e consumidor.
Diante da massificação da produção e do consumo decorrente da evolução tecnológica capitalista, a relação entre consumidor e fornecedor no mercado, antes equilibrada, torna-se desarmoniosa em detrimento do consumidor, exigindo do Direito e do Estado novas soluções e uma atitude positiva para superar a desigualdade entre os agentes econômicos envolvidos na relação de consumo. O consumidor não tem mais condições de discutir os termos da produção e da contratação com o fornecedor, tornando-se mero aderente à oferta do fornecedor, massificada e envolta em técnicas sedutoras de marketing. A necessidade da proteção estatal em favor do consumidor torna-se evidente, tanto para assegurar a proteção dos direitos econômicos do consumidor, como para assegurar a saúde da população que corre riscos diante de produtos sem qualidade. Os Estados Unidos da América, diante desta nova realidade, deflagra as iniciativas com o objetivo de proteção específica do consumidor , cuja filosofia rapidamente se espalha pelo mundo, especialmente entre os países capitalistas, com o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor em face do fornecedor. Tais iniciativas levam ao surgimento de políticas e legislações nacionais voltadas especialmente para as peculiaridades do consumo.
Na América Latina, o desenvolvimento de uma legislação específica para a proteção e defesa dos consumidores se iniciou em meados da década de setenta, assim como a criação e o fortalecimento de instituições voltadas à defesa do consumidor.
No Brasil, como resultado deste movimento, a proteção do consumidor como direito fundamental é inscrita na Constituição Federal de 1988 e consagrada no Código de Defesa do Consumidor de 1990, Lei n. 8.078/90, uma das mais modernas legislações em vigor no mundo desde 1991 .
O Direito do Consumidor, como disciplina independente, passa a gerir as relações jurídicas entre fornecedor e consumidor tendo como princípio básico e fundamental a vulnerabilidade do consumidor e a necessidade de superá-la. Para tanto, no Brasil, assim como em diversos outros países desenvolvidos, o Direito do Consumidor tem por característica se constituir num microssistema jurídico multidisciplinar e interdisciplinar composto de normas de direito público e privado reunidas por princípios filosóficos próprios do Direito do Consumidor, assim como também tem por característica preencher com seus princípios e filosofia todas as normas, independentemente do ramo de Direito ao qual tradicionalmente pertençam, sempre que forem aplicadas a uma relação de consumo.
O enfoque do Direito do Consumidor, como não poderia deixar de ser, é principalmente nacional, pois a ordem jurídica do Estado se faz presente nos limites de seu território. Ocorre que, a cada dia com maior intensidade, os consumidores, inclusive o consumidor brasileiro, vêm-se inserindo diretamente, sem intermediários, no comércio internacional para a aquisição dos mais variados tipos de produtos ou serviços.
Outrora, para consumir um produto importado, o consumidor se valia de um importador, um intermediário entre ele e o fornecedor. Hoje, com a televisão, o telefone, o computador pessoal e a internet, o consumidor não precisa de intermediários. A partir de sua casa, pode consumir qualquer produto, nacional ou internacional, de maneira simples e rápida. Para tanto, confia incondicionalmente na oferta do fornecedor quanto às qualidades anunciadas do produto, bem como na honestidade desse fornecedor, e paga o bem adquirido informando o número do cartão de crédito. Por outro lado, espera que o produto tenha as qualidades que deseja, que não apresente problemas, ou, caso apresente problemas, que a garantia do fornecedor seja ampla, completa e proporcionada de maneira fácil e rápida. Espera também que o site do fornecedor seja inviolável, de modo que ninguém faça uso indevido do número do seu cartão de crédito. Mas qual a efetiva informação e proteção que esses consumidores internacionais possuem? Como poderão exercer seus direitos contra um fornecedor situado no estrangeiro? Quais direitos realmente possuirão ao se confrontar com esse fornecedor estrangeiro?
Além disso, é cada vez mais intenso o movimento de consumidores que se deslocam de seus países para consumir no estrangeiro, levados pelo fornecedor através de uma proposta específica e uma viagem organizada com esse fim ou fazendo turismo. O turismo internacional é importante fonte de riqueza dos Estados, e o amparo do consumidor-turista constitui uma necessidade jurídica e econômica.
A magnitude dos números envolvidos nesse tipo de atividade demonstra que proteger o consumidor internacional é essencial. No Brasil, a expectativa é que em 2005 o e-commerce tenha movimentado cerca de R$2,5 bilhões de reais (incluindo transações nacionais e internacionais) . Segundo relatório da Global Online Retailer em 2007, o comércio global pela internet estará movimentando cerca de US$17 trilhões . As receitas associadas ao fluxo de turismo chegaram a US$476 bilhões em 2000, conforme relata a Organização Mundial do Turismo que prevê que o total de desembarques internacionais atinja a ordem de 1,6 bilhão em 2020 .
Assim sendo, veremos brevemente neste trabalho, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, como a proteção jurídica do consumidor de produtos e serviços estrangeiros vem sendo proporcionada com os recursos legais existentes e sua aplicação pelo Poder Judiciário.
2. OS CONCEITOS DE CONSUMIDOR, FORNECEDOR E RELAÇÕES DE CONSUMO, NO DIREITO BRASILEIRO.
O centro do sistema de proteção ao consumidor brasileiro é o consumidor juridicamente definido pela lei e pela jurisprudência, cuja vulnerabilidade é expressamente reconhecida no direito brasileiro como princípio diretor da ordem jurídica consumerista, consagrado na Lei n. 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor, Capítulo II, em que é estabelecida a Política Nacional das Relações de Consumo, artigo 4o., inciso I, o qual informa todas as disposições do Código e todo o ordenamento jurídico suscetível de aplicação a relação de consumo.
No Direito estrangeiro, as legislações consumeristas também são fundadas no conceito de consumidor , e possuem princípios comuns voltados para a superação da debilidade e desigualdade do consumidor, pois, como leciona Jean M. Arrighi , visam a ultrapassar a real situação de vulnerabilidade do consumidor.
Na doutrina e nos ordenamentos jurídicos, consumidor é aquele que consome bens ou serviços, públicos ou privados, para atender necessidades próprias e não profissionais, caracterização essa que valoriza o consumidor como destinatário final econômico do bem . Trata-se da interpretação finalista, a qual restringe a figura do consumidor àquele que adquire ou utiliza produto ou serviço para uso próprio e/ou de sua família, ou seja, não incorpora o bem ou serviço à cadeia produtiva; não o utiliza para fins profissionais . Isso ocorre porque só essa categoria de agentes econômicos realmente encontra-se em situação de hipossuficiencia a justificar uma proteção especial, a qual visa reequilibrar a relação jurídica mantida com o fornecedor .
No Código de Defesa do Consumidor brasileiro, a definição de consumidor, e a possibilidade de extensão da sua proteção a sujeitos equiparados a consumidores, é das mais amplas entre as legislações contemporâneas.
Dispõe o artigo 2o. ser consumidor “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Destinatário final deve ser interpretado como destinatário final econômico, ou seja, aquele que consome para fins privados e não profissional. Nesse sentido, aponta a jurisprudência dominante nos tribunais brasileiros, inclusive no Superior Tribunal de Justiça. A título de exemplo, cita-se o seguinte aresto:
“MÚTUO – REDUÇÃO DA MULTA CONTRATUAL DE 10% PARA 2% - INEXISTÊNCIA NO CASO DE RELAÇÃO DE CONSUMO. Tratando-se de financiamento obtido por empresário, destinado precipuamente a incrementar a sua atividade negocial, não se podendo qualificá-lo, portanto, como destinatário final, inexistente é a pretendida relação de consumo. Inaplicação, no caso, do Código de Defesa do Consumidor. Recurso especial não conhecido (STJ – 4a. T. – Resp 218505/MG – rel. Min. Barros Monteiro – j. 16.09.1999).
O parágrafo único do artigo 2o. equipara a consumidor “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. Por sua vez, o artigo 17 equipara a consumidor todas as vítimas de um acidente de consumo, ou seja, a legislação consumerista protege e equipara a consumidor todo aquele que for vítima de acidente decorrente de produto ou serviço, independentemente de ser parte em contrato de consumo, ou ser usuário do produto ou serviço colocado no mercado de consumo. O artigo 29, inserido no Capítulo V que dispõe sobre práticas comerciais, equipara a consumidor todas as pessoas determináveis ou não expostas às práticas previstas no capítulo e no capítulo seguinte (o Capítulo VI do CDC trata da proteção contratual).
O conceito de fornecedor é dado pelo artigo 3o. da Lei n. 8.078/90, e assim é considerado toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, ou ainda os entes despersonalizados que colocarem no mercado produto ou serviço em caráter profissional e com intuito de lucro. Nesse rol se incluem os profissionais liberais (artigo 14, parágrafo 4o.).
Os parágrafos 1o. e 2o. do artigo 3o. definem produto ou serviço de forma ampla. O parágrafo 1o. caracteriza como produto “qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”. O parágrafo 2o. conceitua como serviço qualquer atividade fornecida no mercado de consumo mediante remuneração, salvo as decorrentes de contrato de trabalho, e incluindo os serviços diretamente gratuitos, mas indiretamente remunerados ou onerosos como os decorrentes de marketing empresarial .
Assim sendo, podemos afirmar que a relação de consumo é a relação jurídica mantida entre fornecedor e consumidor, decorrente de contrato, ou decorrente de utilização de bem ou serviço posto no mercado de consumo, ou ainda a decorrente de responsabilidade civil extracontratual com consumidor equiparado .
2.1. O CONSUMIDOR E A RELAÇÃO DE CONSUMO INTERNACIONAL.
Definido quem é consumidor, fornecedor e relação de consumo, segundo o Código de Defesa do Consumidor brasileiro, nos parece fácil definir o consumidor internacional como aquele que mantém relação de consumo com fornecedor situado no estrangeiro. O que caracteriza a internacionalidade de uma relação jurídica é estar conectada a dois ou mais ordenamentos jurídicos. O critério para se estabelecer como internacional a relação de consumo deve ser baseado no domicílio, pois é o fato de estarem fornecedor e consumidor domiciliados em Estados diversos, e, conseqüentemente, sujeitos a ordenamentos jurídicos diversos, que ensejará o conflito de leis no espaço em matéria de consumo. Via de regra, as normas consumeristas são de ordem pública, como são as brasileiras (artigo 1o. da Lei n. 8.078/90), e indisponíveis e inafastáveis pelos particulares , destinadas principalmente à aplicação imperativa no âmbito do território estatal.
A doutrina vem classificando o consumidor internacional conforme sua postura na formação da relação de consumo em consumidores passivos e ativos. O consumidor passivo é aquele que contrata com o fornecedor estrangeiro de seu domicílio, atendendo a uma oferta que lhe é dirigida pelo fornecedor, sem deslocamento físico para o estrangeiro (passive Verbraucher). O consumidor ativo, diferentemente, é aquele que se desloca de seu país para outro país e nele consome, como fazem os turistas internacionais (aktive Verbraucher) .
Esse consumo possui peculiaridades que o tornam especialmente problemático quando presentes: 1) falta de continuidade no consumo internacional, o que se torna fator para aumentar a debilidade do consumidor em razão do desconhecimento sobre o fornecedor, sobre a qualidade do produto, sobre os riscos do contrato, pois o consumo de produtos internacionais não é feito com regularidade, assim como as viagens internacionais ; 2) nos contratos turísticos, a difícil reexecução de um serviço, ou mesmo a impossibilidade de reexecução do mesmo; 3) a barreira lingüística entre o fornecedor e o consumidor, que pode impedir o consumidor de obter pleno conhecimento das informações necessárias para a contratação, ou sobre o produto, seu preço, câmbio da moeda, condições de venda e pagamento, garantia, etc
Às dificuldades listadas acima se somam outras, decorrentes de eventual necessidade do consumidor sustentar um litígio no exterior para fazer valer seus direitos violados: 1) a diversidade de normas nacionais sobre direitos do consumidor e a existência de diferentes sistemas jurídicos e judiciários ; 2) o custo de sustentar um litígio no qual todos os trâmites processuais, ou parte deles se desenvolverá no estrangeiro, comparado ao pequeno valor do contrato de consumo; 3) as dificuldades inerentes à determinação da jurisdição competente no plano internacional; 4) o cumprimento de atos no estrangeiro; 5) o reconhecimento e a execução das decisões judiciais estrangeiras.
Estas características do consumo internacional representam novos desafios para o Estado brasileiro superar, a fim de proporcionar efetiva proteção jurídica ao consumidor. Essa proteção precisa se consubstanciar, necessariamente, numa proteção legal – nacional ou internacional – que deve ser associada à atuação decisiva e especialmente inovadora dos tribunais na aplicação do Direito do Consumidor conjugado ao Direito Internacional Privado e ao Direito Processual Civil Internacional. Os limites de apresentação deste trabalho não nos permitem enfocar todas as questões a serem enfrentadas, bem como as soluções que podem ser aventadas inspiradas no direito estrangeiro, especialmente europeu , motivo pelo qual vamos enfocar somente o que consideramos os mais importantes dispositivos legais, analisados e interpretados com base na jurisprudência que consideramos paradigmática em matéria de consumo internacional .
3. A APLICAÇÃO DO DIREITO AOS CONFLITOS INTERNACIONAIS DE CONSUMO PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS.
A jurisprudência brasileira, em matéria de consumo internacional, vem aplicando o Direito de maneira bastante protetiva ao consumidor, o que é saudável para estimular as relações de consumo internacionais. Entretanto vale-se de critérios que, por vezes, não primam pela melhor técnica. Isso enfraquece o conteúdo paradigmático destas decisões e a segurança jurídica das relações de consumo internacionais.
O caso líder nesta temática é o famoso caso Panasonic, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, que veremos a seguir, mas outras decisões também merecerão destaque na seqüência.
3.1. O CASO “PANASONIC”.
A importância da decisão que julgou o case Panasonic reside no fato de o Superior Tribunal de Justiça possuir a missão constitucional de uniformizar a aplicação e a interpretação da legislação federal, nos termos do art. 105, III, da Constituição Federal, sendo referência obrigatória para os demais órgãos judiciários brasileiros, e ser a decisão deste caso pioneira em matéria de consumo internacional.
O STJ, ao julgar esta demanda, decorrente de consumo ativo e internacional, precisou determinar a competência internacional brasileira, a legitimidade passiva ad causam da ré eleita pelo autor e situada no Brasil para responder como fornecedor, e o direito aplicável à lide (se o Código de Defesa do Consumidor brasileiro ou a legislação norte-americana), embora tenha ressaltado o acórdão que a decisão está fundada também nos elementos peculiares da lide. Sendo assim, servirá esta decisão de paradigma para futuros julgamentos de órgãos judiciários nacionais, bem como poderá inspirar julgamentos de órgãos judiciários dos Estados-Sócios do MERCOSUL. O leading case é o seguinte.
Plínio Gustavo Prado Garcia comprou uma câmara de vídeo da marca “Panasonic” nos Estados Unidos da América, fabricada pela Panasonic Company, com garantia contratual de um ano, que teria, segundo ele, apresentado defeito de fabricação.
Imputando à Panasonic do Brasil Ltda. subsidiariedade na responsabilidade pelo vício do produto com o fabricante, ajuizou ação na Justiça do Estado de São Paulo buscando ressarcimento pelos danos sofridos. Em primeiro grau de jurisdição, o processo foi julgado extinto sem julgamento do mérito, por entender o prolator da sentença ser a ré parte ilegítima para a causa, decisão esta mantida em segundo grau de jurisdição, em razão do que recorreu o autor à instância especial.
O acórdão do Superior Tribunal de Justiça, o qual cassou a decisão do tribunal paulista e deu ganho de causa ao recorrente, foi exarado no Recurso Especial n. 63.981 – SP (Registro n. 95.0018349-8), em 11 de abril de 2000, tendo como recorrente e advogado em causa própria Plínio Gustavo Prado Garcia, recorrido Panasonic do Brasil Ltda., e como relator designado para o acórdão o Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Participaram do julgamento os Ministros Aldir Passarinho Junior (relator vencido), Barros Monteiro, César Asfor Rocha e Ruy Rosado de Aguiar. A decisão foi publicada no D. J. de 20.11.2000, disponível integralmente na Revista do Superior Tribunal de Justiça, a.13, vol. 137, Brasília, janeiro de 2001, pp. 387-492, que traz a seguinte ementa, verbis:
“Direito do Consumidor – Filmadora adquirida no exterior – Defeito da mercadoria – Responsabilidade da empresa nacional da mesma marca (“Panasonic”) – Economia globalizada – Propaganda – Proteção ao consumidor – Peculiaridades da espécie – Situações a ponderar nos casos concretos – Nulidade do acórdão estadual rejeitada, porque suficientemente fundamentado – Recurso conhecido e provido no mérito, por maioria.
I – Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas, multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso país.
II – O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje ‘bombardeado’ diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos, notadamente os sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha de conta diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca.
III – Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as conseqüências negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos.
IV – Impõe-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes.
V – Rejeita-se a nulidade argüida quando sem lastro na lei ou nos autos.”
Primeiramente deve ser frisado que a ementa não é precisa ao afirmar, em seu inciso III, incumbir a Panasonic do Brasil Ltda e as empresas nacionais que se beneficiam de marcas mundiais, “responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam...”(grifo nosso), pois a Panasonic do Brasil Ltda., ré no processo e recorrida, sucumbente na instância especial, não anunciou, nem comercializou, o produto viciado que deu ensejo à lide e que se destinava ao mercado americano, como revela o voto do Min. Aldir Passarinho Junior. O produto viciado foi internalizado, trazido para o Brasil, pelo próprio consumidor.
Os ministros que julgaram favoravelmente a lide para o consumidor admitiram que a Panasonic do Brasil Ltda. era parte legítima para a causa, por um liame, segundo a ementa e o voto do relator designado, de natureza econômica, como frisa Claudia Lima Marques , mesmo nunca tendo fabricado, ou vendido, o produto, ou sequer o anunciado, no Brasil, ou no exterior. O produto adquirido pelo consumidor não tem similar no Brasil e se destinava ao mercado americano.
O vínculo econômico foi traçado pelos julgadores da instância especial apenas em razão da comercialização de produtos da mesma marca pelas empresas brasileira e americana, de modo a tornar a empresa brasileira apta a responder processual e economicamente pela relação de consumo litigiosa, consumo esse que beneficiaria em tese todo o grupo econômico transnacional, inclusive a empresa brasileira.
O voto do Min. Ruy Rosado de Aguiar, no entanto, apesar de pouco extenso, traz outras justificativas, importantíssimas que, lamentavelmente, não foram incluídas na ementa do acórdão. O Min. Ruy Rosado de Aguiar frisou em seu voto (e voto integra a decisão do Tribunal), fundado na Lei n. 8.078/90, ser a Panasonic do Brasil Ltda. pertencente ao mesmo grupo societário da empresa fabricante do produto viciado, ambas vinculadas à mesma matriz situada no Japão, - conforme admitido pela própria recorrida no seu arrazoado - e, portanto, considerada responsável a empresa brasileira subsidiariamente pela qualidade do produto produzido pela empresa fabricante americana, em razão do art. 28, parágrafo 2o., do Código de Defesa do Consumidor.
Como os demais votos se centram mais nos aspectos econômicos do que jurídicos, entendemos que o voto do Min. Ruy Rosado de Aguiar deve ser destacado por seu conteúdo jurídico mais consistente.
A questão abordada no voto do Min. Ruy Rosado de Aguiar, embora ele não coloque nestes termos, é imprescindível para o deslinde da causa, pois é pertinente à questão da legitimidade passiva da ré - empresa brasileira - para causa fundada em relação jurídica mantida pelo consumidor com outra pessoa jurídica, pessoa jurídica essa estrangeira e sem um estabelecimento filial no Brasil.
O artigo 28, o qual dá suporte ao voto do Min. Ruy Rosado de Aguiar, estabelece a desconsideração da personalidade jurídica do fornecedor e a co-responsabilidade de pessoas jurídicas pertencentes ao mesmo grupo econômico, nas hipóteses e graus que arrola, em face do consumidor.
Zelmo Denari , ao comentar o citado artigo 28 e seus parágrafos, ressalta a inovação do Código de Defesa do Consumidor ao acolher a teoria da desconsideração da personalidade jurídica sem levar em conta, sempre e necessariamente, a fraude ou o abuso de direito, pois, segundo o citado artigo, a responsabilidade pela lesão ao direito do consumidor recairá sobre o acionista controlador e, no caso de grupo societário, nas sociedades que o integram, sempre que a personalidade jurídica do fornecedor for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Isso autoriza entender que as demais sociedades integrantes do holding são partes legítimas ad causam nas ações de responsabilidade civil promovidas pelo consumidor.
No caso de grupo societário, a responsabilidade das sociedades que o integram é disciplinada nos parágrafos 2o.,3o.,e 4o., do art. 28, o qual dispõe sobre a responsabilidade solidária, em via principal ou subsidiária, destas sociedades e das consorciadas e coligadas .
Essa disposição inovadora do Código de Defesa do Consumidor indubitavelmente autoriza ao Superior Tribunal de Justiça considerar a Panasonic do Brasil Ltda., assim como a Panasonic Company americana, pertencentes ao mesmo grupo societário ou econômico, considerando ambas controladas pela Panasonic japonesa, fato que não foi negado pela Panasonic brasileira e foi reconhecido no voto do Min. Ruy Rosado de Aguiar. Conseqüentemente, foram consideradas co-responsáveis as empresas do grupo pelos danos causados ao consumidor. Em seu voto, o Min. Ruy Rosado de Aguiar considera a existência do grupo societário baseado apenas na afirmação da própria empresa brasileira que assume participar do grupo econômico.
Quanto à natureza da responsabilidade, dispõe o art. 28, parágrafo 2o., que as sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações das filiadas; logo, possuem responsabilidade secundária, pressupondo-se uma responsabilidade principal, à qual a secundária apóia ou reforça, desde que não seja a principal suficiente para atender a obrigação assumida . Tal tema não foi enfrentado pelo Tribunal. A principal responsável, a empresa americana, não integrou a lide, e a empresa brasileira foi condenada como se principal responsável fosse.
Cumpre ainda destacar que neste julgamento não foi questionada a competência da Justiça brasileira para a causa, prevalecendo assim as disposições do artigo 101, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, sobre as disposições do artigo 88, inciso I e Parágrafo único do Código de Processo Civil, apenas pelo fato do réu eleito pelo consumidor estar sediado no Brasil, apesar de não ser sucursal da pessoa jurídica americana e não ter participado da relação jurídica com o consumidor .
O STJ também aplicou o Código de Defesa do Consumidor brasileiro como norma material de aplicação imediata, com efeito extraterritorial, para resolver a demanda, como revelado nos votos vencedores , apesar do contrato ter sido celebrado nos E.U.A. e da regra de conexão do artigo 9o. da Lei de Introdução ao Código Civil determinar a aplicação do direito do local da celebração do contrato.
Podemos então concluir, com base nesta decisão, que, em matéria de litígio internacional de consumo: 1) o Superior Tribunal de Justiça não interpreta restritivamente o art. 88, I, e parágrafo único, do Código de Processo Civil, sendo, portanto, competente a Justiça brasileira sempre que a pessoa jurídica estrangeira, suas filiais ou coligadas, forem aqui domiciliadas, considerando o Código de Defesa do Consumidor, artigo 101, inciso I, como norma de ordem pública inclusive para determinar a jurisdição internacional do foro do domicílio do consumidor como absoluta para demandas de consumo internacional; 2) para fins do artigo 28 do CDC, existe grupo empresarial ou econômico sempre que existir vinculação ou subordinação de fato ou de direito entre pessoas jurídicas; 3) o Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, que estipula a responsabilidade subsidiária das empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico, valoriza a solidariedade na responsabilidade pelos vícios do produto ou do serviço , dispensando a integração da empresa que seria a principal responsável na lide se para o consumidor for mais difícil contra ela exercer os seus direitos; 4) o Superior Tribunal de Justiça considera o Código de Defesa do Consumidor brasileiro como norma de ordem pública internacional, de aplicação imperativa e com eficácia extraterritorial a todo conflito de consumo internacional, e inaplicável nessas relações obrigacionais o disposto no art. 9o. da Lei de Introdução ao Código Civil.
3.2. DECISÕES EM LIDES ENVOLVENDO AGÊNCIAS DE TURISMO, IMPORTADORES E EMPREENDEDORES DE TIME-SHARING.
No caso acima estudado, a relação de consumo internacional estava bem evidente. No entanto, nem sempre a relação jurídica internacional está clara para o consumidor. È o que passaremos a estudar.
O consumidor brasileiro, ao tratar com fornecedores de produtos ou serviços estrangeiros domiciliados no Brasil, firma contrato que aparenta ser inteiramente nacional, mas a relação jurídica que dele surge se estende e obriga empresários estrangeiros envolvidos na cadeia de fornecimento do produto ou do serviço . Isso ocorre porque o Código de Defesa do Consumidor, em seus artigos 12 a 14, 18 a 19 e 28, cria um sistema de responsabilidade solidária entre empresários-fornecedores, o qual vincula entre si os componentes da cadeia produtiva responsável pela colocação do produto ou serviço no mercado. Quando a responsabilidade principal e solidária estabelecida pela lei não é suficiente para assegurar os direitos do consumidor lesado, estabelece o Código de Defesa do Consumidor responsabilidade subsidiária entre pessoas empresárias que não estão diretamente vinculadas à colocação do produto viciado no mercado, mas que são pertencentes ao mesmo grupo empresarial .
Estes contratos não evidenciam o elemento de estraneidade para o consumidor em razão da própria percepção limitada do consumidor quanto aos aspectos técnicos e jurídicos do pacto, e sequer imaginam a hipótese de sustentar uma lide no estrangeiro em caso de inadimplemento contratual, ou vícios e defeitos no produto ou serviço. Assim sendo, a tendência da jurisprudência é de responsabilizar principalmente e em favor do consumidor o empresário sito no Brasil, para que o consumidor possa exercer seus direitos com maior facilidade, ajuizando a ação no seu domicílio (art. 101, I, do CDC) e aplicando a Lei n. 8.078/90 (art. 1o., norma de ordem pública). Isso evita que o consumidor tenha que sustentar lide no todo, ou em parte, no estrangeiro, com as enormes dificuldades que isso representa para o acesso à Justiça, e se submeta a um ordenamento jurídico que não conhece.
Cite-se, a título de exemplo, o caso em que o consumidor brasileiro contrata uma agência de turismo nacional para uma viagem ao exterior. O consumidor realiza um contrato a princípio nacional , mas a relação de consumo e a responsabilidade civil dela decorrente se estendem a todos os fornecedores de serviços que estão no exterior: transportadores, hotéis, operadores e guias turísticos locais. Em caso de inadimplemento, os tribunais brasileiros vêm entendendo que a agência de turismo é a principal responsável perante o consumidor por qualquer falha no serviço, embora para adimplir o contrato o agente turístico dependa de uma rede de fornecedores. Os terceiros envolvidos na atividade turística contratada causadores do vício ou dano na prestação do serviço são considerados como prepostos ou auxiliares da agência . Nesse sentido:
“Responsabilidade Civil – Agência de viagens – Código de Defesa do Consumidor – Incêndio em embarcação. A operadora de viagens que organiza pacote turístico responde pelo dano decorrente do incêndio que consumiu a embarcação por ela contratada. Passageiros que foram obrigados a se lançar no mar, sem proteção de coletes salva-vidas, inexistentes no barco.(Resp 291384/RJ, rel.Min.Ruy Rosado de Aguiar, 15.05.2001)”
Também no que se refere a contratos entre consumidores e importadores, a interpretação jurisprudencial tem favorecido o consumidor. O importador, apesar de ser comerciante e não produtor, responde civilmente por ser o responsável pela internalização do produto no mercado brasileiro, sendo, conseqüentemente, o primeiro responsável por sua qualidade . Nesse sentido o seguinte aresto do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
“AÇÃO DE CONHECIMENTO CONDENATÓRIA – VEÍCULO NOVO E IMPORTADO – VÍCIO DE QUALIDADE NÃO SANADO – SUBSTITUIÇÃO POR OUTRO VEÍCULO – ADMISSIBILIDADE – PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA AFASTADA – LEGITIMIDADE ATIVA E PASSIVA AFIRMADAS – PERCENTUAL DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS MANTIDO. 1. [...]3. O fabricante e o comerciante, em se tratando de vício do produto, podem ser demandados conjuntamente, pois sua responsabilidade, nesta situação, é solidária, sendo portanto partes legítimas a figurar no pólo passivo da relação processual referente à demanda em que o consumidor postula a substituição do bem viciado (art. 18, caput, do CDC).4. Uma vez não sanado o vício constatado no automóvel novo importado, no prazo de trinta dias (art. 18, parágrafo 1o., do CDC), conforme revela conjunto probatório, torna-se cabível o pedido de substituição desse bem por outro da mesma espécie e em perfeitas condições de uso (art. 18, parágrafo 1o., I, do CDC).5. Percentual de honorários advocatícios mantido, pois fixado conforme a lei processual. Apelações improvidas.(TJRS – 11a.Câm. – ApCiv 70001577154 – rel. Des. Voltaire de Lima Moraes – j. 22.11.2000)”
Nos contratos de time-sharing ou multipropriedade , a jurisprudência também é favorável ao consumidor. Nesses contratos o consumidor adquire direitos ao uso de imóvel turístico no exterior para fruição em determinados períodos de tempo previamente contratados, cuja operação e comercialização se fazem por empresários e empreendedores estrangeiros domiciliados no exterior. A relação de consumo é, portanto, internacional, considerando o domicílio dos contratantes. No entanto, os tribunais brasileiros, considerando que a publicidade e venda acontecem no território brasileiro, destacam a importância do princípio da boa-fé, da proteção da confiança do consumidor, bem como a teoria da aparência, para estabelecer responsabilidade solidária e a legitimação passiva ad causam de todos os envolvidos na comercialização do negócio, e firmar a competência jurisdicional brasileira para julgamento da causa. Tal entendimento permite a propositura da ação e a execução da decisão definitiva contra os corretores ou prepostos do empresário estrangeiro no Brasil, evitando a prática de demorados e caros atos no exterior . Como exemplo, citamos o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
“MULTIPROPRIEDADE – CONTRATO INTERNACIONAL – CONTRATAÇÃO NO BRASIL – EMPREENDIMENTO LOCALIZADO NO URUGUAI – LINGUA ESTRANGEIRA – PROMITENTE VENDEDOR – MANDATÁRIO – TEORIA DA APARÊNCIA – DESCONHECIMENTO DAS CLÁUSULAS RELATIVAS AO USO DO IMÓVEL – ART. 49 DO CDC. 1. É parte legítima para figurar no pólo passivo da ação de resolução de contrato internacional de promessa de compra e venda de ações relativas ao uso de imóvel pelo sistema de multipropriedade a empresa brasileira que, no Brasil, promove a informação, publicidade e oferta do empreendimento a ser realizado no exterior, como se fosse o titular do direito. A transmissão de confiança de uma situação jurídica e a omissão de sua real condição de mandatária importa na sua responsabilidade pela contratação. Ainda mais quando foi a responsável pela elaboração do contrato, tendo infringido o princípio da transparência e do dever de informação. Fere o princípio da boa-fé e da doutrina dos atos próprios a alegação de ilegitimidade passiva ‘ad causam’. 2. Não obriga o consumidor a promessa de contrato de multipropriedade celebrado em língua estrangeira e do qual não teve ciência das cláusulas relativas ao uso do imóvel a ser adquirido. Apelação desprovida. Recurso adesivo provido em parte.(TJRS – 9a. Câmara – ApCiv 196182760 – rel. Des. Maria Isabel de Azevedo Souza – j. 19.11.1996).”
Examinado o posicionamento da jurisprudência sobre consumo internacional em geral, cabe-nos fazer uma rápida incursão sobre os direitos do consumidor no Mercosul uma vez que o Brasil mantém relações comerciais, políticas e econômicas preferenciais com os sócios do mercado comum.
4. MERCOSUL .
Apesar dos eventuais problemas com que se deparam os Estados-Sócios, especialmente em razão da fragilidade econômica dos mesmos, o processo de integração econômica avança na América do Sul especialmente através do Mercosul, que vem admitindo novos sócios e associados , e, para incrementá-lo, é imprescindível a participação do consumidor no mercado intracomunitário como agente econômico, mesmo porque a integração econômica visa à melhoria das condições de vida das populações dos Estados-Sócios do MERCOSUL .
O MERCOSUL, atento a tais necessidades, vem estudando fórmulas para proporcionar proteção comunitária ao consumidor mercosulino, mas não vem obtendo progressos significativos nesse sentido.
O Grupo Mercado Comum editou em 1994 a Resolução 126/94, norma de direito internacional privado , cujo art. 2o. dispõe que, até a aprovação de um Regulamento comum para a defesa do consumidor, cada Estado-Parte aplicará sua própria legislação sobre a matéria em relações de consumo intracomunitárias, instituindo assim a aplicação da regra do mercado de destino .
As demais medidas tomadas neste domínio não foram adiante especialmente em razão de obstáculos político-econômicos decorrentes dos diferentes níveis de proteção ao consumidor entre os Estados-Sócios. O Protocolo de Santa Maria sobre Jurisdição Internacional em Matéria de Relações de Consumo , o qual visa estabelecer de maneira uniforme a competência internacional dos Estados-Partes, de forma a assegurar ao consumidor a prerrogativa de demandar e ser demandado somente no foro de seu domicílio, e também disciplinar outras questões de natureza processual internacional, não está em vigor por força do seu art. 18. Esse artigo dispõe que a tramitação da aprovação do Protocolo no âmbito de cada um dos Estados Partes somente terá início após a aprovação do Regulamento Comum Mercosul de Defesa do Consumidor em sua totalidade, inclusive eventuais anexos, pelo Conselho do Mercado Comum. O citado Regulamento não foi aprovado e, apesar dos estudos desenvolvidos pela CT 7 , não existe nenhuma expectativa de que o citado Regulamento Comum venha a ser aprovado futuramente para os Estados-Sócios .
A conseqüência é que, na prática, ao litigar com fornecedor estrangeiro situado no MERCOSUL, as condições do consumidor brasileiro não são significativamente melhores do que quando litiga com fornecedor estrangeiro de Estado que não seja sócio do MERCOSUL, uma vez que não existe uma norma comunitária sobre a matéria entre os Estados-Sócios, e a regra de conexão comunitária de Direito Internacional Privado (Resolução GMC n. 126/94) remete a solução do mérito da demanda ao direito do local onde é fornecido o produto ou serviço ao consumidor.
O consumidor mercosulino litigante terá a seu favor o Protocolo de Las Leñas sobre cooperação judiciária em matéria cível e comercial e algumas disposições comunitárias que facilitam o litígio internacional no MERCOSUL, mas nenhuma norma material ou processual específica para aplicação ao consumo transfronteiriço. Todos os atos a serem realizados no exterior serão realizados através do tradicional sistema de cartas rogatórias, o qual é regulado no mercado comum pelo Protocolo de Las Leñas de 1992 . Para medidas de caráter cautelar vige também o Protocolo de Medidas Cautelares de Ouro Preto, de 1994.
O consumidor também poderá gozar de assistência jurídica gratuita, pois os Estados-Sócios firmaram um acordo sobre o benefício da justiça gratuita e assistência jurídica gratuita em 15.12.2000 através de Decisão do Conselho Mercosul CMC/DEC.49/00, e outro do mesmo teor com os associados Chile e Bolívia, CMC/DEC.50/00, os quais visam a garantir aos nacionais dos Estados-Partes a assistência jurídica e a sua manutenção quando da execução de qualquer ato em território de outro Estado-Sócio ou Associado.
Para os litígios nos quais o consumidor brasileiro é ativo, ou seja, foi à Estado-Sócio do MERCOSUL e lá consumiu e pretende sustentar demanda no domicílio do fornecedor, o “Acordo Interinstitucional de Entendimento entre os Órgãos de Defesa do Consumidor dos Estados Partes do MERCOSUL para a Defesa do Consumidor Visitante”, firmado em Buenos Aires, Argentina, no dia 03 de junho de 2004, o socorrerá, pois nele se comprometem os referidos órgãos a reciprocamente prestarem auxílio jurídico ao consumidor de Estado-Parte em visita a outro Estado-Parte no qual se envolva em conflito de consumo com fornecedor do Estado-Parte que visita . Apesar da boa intenção das partes, só em casos excepcionais o consumidor poderá realmente se valer deste instrumento, pois normalmente a viagem turística não é superior a alguns dias, tempo insuficiente para se resolver qualquer litígio através de órgãos judiciais ou extrajudiciais de soluções de controvérsias.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Ao concluirmos esta breve análise, parece-nos evidente que o consumidor brasileiro de produtos e serviços estrangeiros encontra ampla proteção no sistema jurídico nacional, desde que o fornecedor, ou empresários a ele ligados e também considerados fornecedores, seja por terem participado da colocação do produto ou serviço no mercado, seja por pertencerem ao mesmo grupo empresarial, estejam ao efetivo alcance da Justiça brasileira.
No entanto, quando o fornecedor está no estrangeiro, ao consumidor só resta utilizar-se dos recursos do Direito Internacional Privado, ou seja, praticar atos no exterior mediante cartas rogatórias e tentar obter o reconhecimento e a execução de uma decisão judicial nacional no estrangeiro mediante o procedimento previsto na lei deste país e aí executar o fornecedor, com todas as dificuldades inerentes à manutenção de uma demanda no exterior, como comentamos no desenrolar desse trabalho. Sendo assim, parece-nos primordial para o consumidor brasileiro o empenho das autoridades em regular as relações internacionais de consumo, especialmente através de convenções sobre jurisdição internacional e reconhecimento e execução de decisões estrangeiras, as quais deverão prover disposições que assegurem o efetivo acesso à Justiça para os consumidores passivos e ativos. Também é imprescindível adaptarmos regras materiais e processuais nacionais para a realidade do consumo internacional, inclusive facilitar ao máximo a possibilidade das partes litigarem sem se deslocar dos seus domicílios em virtude do custo que isso representa. Hoje, sustentar uma lide internacional em Juizado Especial Cível brasileiro, por exemplo, representa um custo exorbitante para o fornecedor internacional, caso ele não tenha representante no Brasil, pois, para não ser considerado revel, terá de comparecer a todas as audiências do processo . A proteção do consumidor brasileiro não deve resultar em situações iníquas, pois o objetivo da ordem jurídica é equilibrar a relação de consumo e fomentar a segurança jurídica entre os agentes econômicos desta relação jurídica.
Nesse tema urge a reedição do Protocolo de Santa Maria sobre jurisdição internacional em matéria de consumo no MERCOSUL, para se propiciar ao consumidor mercosulino a real possibilidade de se processar o fornecedor internacional quando seu direito for violado .
Cremos que também chega a hora de pensarmos em desenvolver meios alternativos para a solução de conflitos internacionais de consumo, como já existem na Comunidade Européia, especialmente a arbitragem , pois facilitam em muito o exercício dos direitos dos consumidores no plano internacional, especialmente se esses órgãos forem vinculados diretamente ao Estado ou sob rígido controle estatal a fim de que a sua imparcialidade seja assegurada .
Por fim, merecem referência positiva e acompanhamento por parte da comunidade jurídica dois projetos em andamento por iniciativa do Governo Brasileiro neste domínio. Primeiro, o projeto de lei em elaboração no Ministério da Justiça para a inclusão de um inciso no artigo 88 do Código de Processo Civil determinando a competência internacional da autoridade judiciária brasileira em razão do domicilio do consumidor no Brasil em conflitos internacionais de consumo . Segundo, a proposta brasileira levada à Conferência Interamericana de Direito Internacional Privado – CIDIP VII (Organização dos Estados Americanos – OEA), para uma Convenção Interamericana sobre a Lei Aplicável a Alguns Contratos e às Relações de Consumo .
Referência para citação: KLAUSNER, Eduardo Antônio. A proteção jurídica do consumidor de produtos e serviços estrangeiros in Revista de Direito do Consumidor, n. 59, julho-setembro de 2006, S.Paulo:RT.